É preciso (re)aprender a fazer parte – Crónica RV Jornal

Da minha infância, recordo o aglomerado de gente que avançava o Adro da Igreja para celebrar algo que, naturalmente, nem todos conheciam ainda. Mas avançavam firmes e em contacto. Recordo as saudações de domingo, as roupas de ocasião, a rosca ao pequeno almoço e o assado a fervilhar nas nos fogões das cozinhas de fora, onde se reuniam as famílias. Recordo quando eu mesma avançava os caminhos de terra, que eram atalho para me esconder da multidão, antes da chegada ao Adro, onde se reuniam as catequistas que garantiam a presença dos mais novos na missa. A meio do caminho, lá encontrava um amigo em fuga que me convidava a visitar o seu esconderijo. Em pouco tempo, éramos já uns sete a enganar o domingo, e as catequistas, sentados na pedra junto ao regato. Éramos, então, um grupo de rebeldes a desafiar os costumes. Protagonistas de uma conduta que se transformaria em pecado na sessão de catequese seguinte.

Recordo também os meus tempos de escola em que nos uníamos por uma causa comum, ainda que esta consistisse em enganar os funcionários e os professores quando um dos nossos furava as regras e se candidatava a castigos diversos. É claro que esta conduta estava errada aos olhos dos adultos, pois éramos cúmplices de um infrator e isso não era nada bonito. Mas era maravilhoso sentir que éramos um grupo de elementos unidos e dispostos a arriscar em nome da amizade, mesmo que o elemento infrator fosse o mais chato e o mais impulsivo e reativo do grupo.

Recordo ainda as noites longas de Verão, passadas nos passeios das casas, onde ficávamos horas a conversar, a jogar futebol, ao elástico e a furar as folhas das árvores com pedrinhas lançadas pelas fisgas. No meio da algazarra, havia sempre alguém que tinha uma péssima pontaria e errava o alvo, furando os vidros das janelas do vizinho. Sem pestanejar, fugíamos todos por campos adentro e escondíamo-nos na casa velha, no alpendre ou por trás do tanque público, até sermos descobertos. Éramos sempre descobertos, pois a vizinha da frente que cuscava a vida alheia por trás das precianas tinha visto tudo e rapidamente abria a janela e nos denunciava ao lesado. Uns levavam uma tareia na hora, outros iam para casa sob ralhetes bem audíveis e eu, que raramente aprontava, corria para casa com vergonha de ser advertida pela minha mãe à frente de toda a gente. Na noite seguinte, quando retomávamos a rotina nos passeios e nas ruas, já ninguém estava zangado com o amigo que armou a confusão e que fez com que todos tivessem castigos por algo que não haviam feito. A verdade é que éramos um núcleo forte, unido e nada abalava a aliança criada no decorrer dos dias.

Hoje, olho para os meus filhos e não os vejo pertencer a coisa nenhuma. Nas noites de Verão, as ruas permanecem vazias de crianças e os encontros entre elas são cada vez mais fugazes, distantes e excessivamente controlados por especialistas de instituições. Vivemos na era das especialidades e sinto que somos, cada vez mais, meros fragmentos de nós próprios, desagregados e sós.

É importante ser de algum lugar e saber de si na relação com o outro. É necessário pertencer. É urgente ter ‘pelo que’ e ‘por quem’ lutar. É preciso (re)aprender a fazer parte!!!

 

– Carina Flor (Crónicas Jornal RV, fevereiro 2025)