“Foi o tempo que dedicaste à tua rosa que a fez tão importante.” – Crónica RV Jornal

Li o livro “O Principezinho”, de Antoine de Saint-Exupéry, aos trinta anos. Nessa altura, este livro marcou um ponto de viragem na forma como eu me relacionava com o mundo, com o outro e comigo. De todas as passagens maravilhosas deste livro, a importância da rosa atravessou a minha realidade e eu comecei a vê-la refletida no mundo, no outro, em mim.

Nos últimos tempos, a violência tem ocupado o tema dos dias e trazido à superfície da existência as sombras mais densas da humanidade. Não é possível ficar indiferente à forma impulsiva e inconsciente com que as pessoas se confrontam, se relacionam e se vão perdendo do mundo, do outro, de si e da rosa que, a pouco e pouco, vai perdendo a sua importância.

Penso: Que vazio alberga estas emoções que implodem antes de explodirem e deixam no mundo, no outro e em si, um rasto de destruição? Que carência? Que falta? Que ausência?

O que leva alguém a ultrapassar as suas próprias fronteiras?

Não acredito na maldade humana. Quando eu vejo uma criança, por maiores que sejam as suas diabruras e por mais frequentes que sejam os seus ataques de fúria, em nenhuma altura reconheço maldade nas suas ações. Em nenhum momento vejo nos seus olhos ameaças eminentes. Vejo somente olhos que transparecem medo, insegurança e um vazio que cresce com elas.

Conheço bem este vazio, tal como tu, e tu, e tu…

Todos nós trazemos vazios da infância; esses buracos escuros por onde ainda sangram as feridas que cicatrizaram à força, sem cuidado e sem visibilidade. Aquelas feridas que, por força das circunstâncias ou por modelagem social e cultural foram escondidas, como se fossem motivo de vergonha ou de fraqueza. Julgo que é isto que distingue o caráter das nossas feridas. Julgo que é isto que distingue o potencial devastador ou enriquecedor de cada vazio.

É a visibilidade que damos à nossa dor e a dedicação ao tempo de sanação das nossas feridas que vai ditar a importância da rosa refletida em cada um de nós. É por isto que não posso aceitar que digam a uma criança para não chorar, para não gritar, para não lembrar. É por esta razão que devemos ensinar as crianças a relembrarem o que lhes dói, ensinar-lhes a chorarem as suas perdas, a reclamarem as saudades e a gritarem os desesperos. Nenhuma criança deverá ser forçada a ultrapassar o inultrapassável. Toda a criança deverá aprender a honrar os seus próprios vazios. Só assim, depois de muita dedicação às suas feridas, saberá que não voltarão a sangrar, porque elas só sangram para serem efetivamente vistas, olhadas, consideradas e integradas no todo que é cada indivíduo.

Uma ferida de infância é um botão de rosa que secou antes de desabrochar. É uma marca eterna, uma cicatriz, uma falha, uma imperfeição, um defeito, talvez. Mas que merece toda a nossa dedicação, pois, como refere Clarice Lispector: “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta o nosso edifício inteiro.”

 

– Carina Flor (Crónicas RV Jornal, junho 2023)