A infância e a velhice são um lugar sem tempo. São, em simultâneo, o riso farto da criança empoleirada nos muros anunciando a leveza do presente e o olhar vazio do idoso na soleira da porta carregando o peso do passado. Entre uma geração e outra, num paralelismo fora do tempo, talvez se percam muitos sonhos, talvez se abra mão de muitas vontades, talvez se deixe para trás a possibilidade de sermos quem somos de verdade. Talvez sejamos frequentemente tentados a negociar a nossa própria essência, à custa das personas e das máscaras que vamos assumindo como sendo nossas. Talvez esta sociedade, que julga muito mais do que elogia, nos esteja a impedir de construir um espaço autêntico entre os limites da nossa idade.
Vivemos numa época em que já se criaram caixas para tudo e, como bons servos das leis com as quais não concordamos, lá vamos procurando entrar nelas, a qualquer custo, na tentativa de sermos aceites, aprovados e de garantirmos o sentido de pertença que, obviamente, é essencial à nossa sobrevivência. Vivemos na ilusão de sermos parte do invólucro de uma caixa que não nos serve.
Se, na caixa do jornalista só cabe a curiosidade, a imparcialidade, a comunicação, a persuasão; se, na caixa do psicólogo só cabe a habilidade verbal, a empatia, o saber científico; se, na caixa do escritor só cabe a boa oratória, a popularidade, o conhecimento literário; onde caberá o “para além disto”? E se não formos nada disto?! E se formos muito mais do que isto?!
(Confesso que, quando comecei a partilhar publicamente os meus poemas, ainda que num meio muito local, eu descobria-me, muitas vezes, em sobressalto, pensando: “se eu entrar naquela caixa (a do escritor) vai sobrar muito espaço lá dentro, pois (bem ou mal) eu só escrevo, mas sou péssima oradora e não percebo nada de literatura…”)
E, assim, corremos o risco de viver uma vida inteira dentro de lugares vazios, alimentados por fossos de frustração e revolta dentro dos corações que nunca envelhecem, mas que morrem ainda jovens dentro de estereótipos que nos anulam, que nos limitam e nos reduzem a quase nada.
Quando observo o olhar longínquo do idoso na soleira da porta, eu ainda vejo a criança que fazia as perguntas mais inoportunas, que beliscava o constrangimento dos já “encaixotados” e que garantia o seu sentido de pertença sem ter que depender ou de se converter. Ainda lá está, à espera de um último resgate, a criança que sonha ‘ainda que’ e que ousa ‘apesar de’. Ainda lá mora, nesse olhar que aguarda uma forma de reconciliação e uma ânsia de libertar da caixa o corpo despido de condições, a essência descomprometida da mesma criança que se empoleirava nos muros sem medo da exclusão.
Sejamos o jornalista que opina sem medo sobre o mundo, sejamos o psicólogo que, sem influência de uma qualquer corrente, escuta sem analisar e sejamos o poeta de rua que nunca leu um único livro. Sejamos verdadeiros nesta linha de tempo a que chamamos de vida, sejamos autênticos na nossa vulnerabilidade e, quando contarmos os nossos anos, que a nossa idade não seja só passado!
– Carina Flor (Crónicas RV Jornal, outubro 2022)