Há dias, reencontrei um casal amigo que não via há mais de uma década. Tomámos um café e conversámos um bocadinho. O Zé e a Ana (nomes fictícios) estavam de passagem por Vizela e reencontrei-os num hipermercado, com o mesmo sorriso verdadeiro e tranquilo de há anos. Perguntei-lhes qual o segredo de estarem juntos há tanto tempo e de se relacionarem tão bem. O Zé perguntou-me se eu conhecia a parábola do tigre, do burro e do leão. Respondi que sim, mas muito vagamente.
A Ana prosseguiu com um olhar terno e salientou que eles, enquanto casal, tinham um pacto vital: nenhum deles podia sujar as emoções do outro. Tirando isso, ambos eram livres e igualmente responsáveis por todas as ações e pensamentos. O Zé, sempre com um humor poético, rematou dizendo que às vezes punha as emoções da Ana em pantanas, mas que rapidamente se mexia para limpar e arrumar tudo. Até porque eram as emoções da Ana que lhe davam os bons dias e as boas noites há anos.
Ana acrescentou que cada um também estava incumbido de assear os seus próprios corações e que, para isso, havia uma regra que não podia ser transgredida em situação alguma. Foi então que o Zé voltou a lembrar a dita parábola.
Na parábola do tigre, do burro e do leão, muito resumidamente, o burro disse ao tigre que a erva era azul. O tigre não concordou e disse que a erva era verde. Para resolver a questão, o burro e o tigre foram procurar esclarecimentos junto do leão. Este, mais sábio do que os outros dois, concordou com o burro, disse que a erva era azul e castigou o tigre. Depois de aceitar sua a punição, o tigre questionou o leão sobre a razão de ter sido castigado, já que ele sabia muito bem que a erva era verde. O leão respondeu que a questão não era sobre validar se a erva era azul ou verde. Esclareceu que ele havia sido punido por, mesmo sendo uma criatura corajosa e inteligente, ter perdido o seu tempo a discutir com um louco fanático que não se ajusta à realidade ou à verdade, mas somente à vitória das suas crenças e ilusões.
Ora, a visão deste casal amigo e esta parábola vieram fazer uma espécie de limpeza a fundo nas minhas emoções, muitas vezes contaminadas por aqueles que só procuram uma validação das suas crenças egoístas e infundadas. Aqueles que, para se sentirem mais importantes, diminuem todos à sua volta. Aqueles que em todos os seus discursos só incluem críticas e desfavorecimentos e que, para além desses comentários depreciativos, são incapazes de desenvolver o mais básico dos temas. Aquelas mesmas pessoas que se mantêm infestadas de emoções auto e hétero destrutivas e que, completamente obstinadas e limitadas aos seus umbigos, continuam a alimentar egos feridos e a impedir que os outros mantenham o asseio das suas próprias emoções.
Este casal amigo seguiu caminho e despediu-se com um abraço e um olhar incólume. E é exatamente isto que eu sinto sempre que recordo o Zé e a Ana: os intocáveis! Olho-os, acenando-me de dentro do carro, e tenho a certeza absoluta de que, a partir de hoje, a minha higiene emocional será sempre uma prioridade.
– Carina Flor (Crónicas Jornal RV, maio 2024)