Não se pode falar de amor sem que se morra um pouco primeiro. Só depois que se morre, toda ou só uma parte, somos capazes de encontrar as palavras certas para falar deste mundo inteiro a que chamamos de amor. É sabido que nele cabem todas as emoções e todos os significados, sem que nos sintamos transbordar ou sufocar, porque o amor só é grande o suficiente para ser exatamente o necessário. Pode até ser uma casa gigante, mas ele só ganha sentido quando a casa é desabitada ou quando já não queremos morar nela. Para podermos falar dele (do amor) talvez tenhamos que lhe dar algum tempo e uma certa distância. Só depois, muito depois, do que julgamos ser amor, o amor é!
Soube disto quando, num destes dias, entrei num café e dei de caras com um casal muito bem-disposto, rindo um contra o outro, partilhando um café junto ao balcão. Enquanto eu aguardava ser atendida, não pude deixar de rir com eles (ou contra eles!), sem que houvesse necessidade de um diálogo partilhado entre nós. Sabem aqueles momentos em que somos levados pela corrente?! Pois, em poucos segundos, a conversa já era comigo e a senhora disse-me: “Sabe, menina, já enterrei dois antes deste, mas cheira-me que este me vai enterrar primeiro e ainda acorda a rir no dia seguinte!!!” (Depois disto, entoou novamente uma gargalhada a três, como se o tema da morte fosse uma grande comédia.)
Confesso que fiquei um pouco sem jeito. A morte, seja qual for o seu tom, não é propriamente uma melodia que eu escute de ânimo leve. Eu ri com eles, mas a sabedoria daquela mulher ia um pouco além do expectável e lá me fez esgravatar os confins da casa da minha alma, com um discurso tão profundo que, se lhe retirasse todas as gírias e todos os palavrões seria um verdadeiro texto teórico, reflexivo, digno de ser publicado em qualquer livro de psicologia ou de filosofia. Disse-me:
“Foi preciso enterrar dois para descobrir este, sabe?! E custou-me muito… Que eu era apaixonada! Mas este! Ah, este está sempre bem disposto…às vezes até me enerva… Este adormece a rir e acorda a rir. Está sempre tudo bem p’ra ele. Os outros tinham cá umas trombas que chegavam ao chão. E olhe que eram mais bem-parecidos do que este, sabe? Mas este, olhe, aqui que ele não nos ouve (chegando-se mais perto dele para que a ouvisse), nem o posso deixar sozinho que elas «amandam-se» a cima que é um mimo! Ai, ai! Tenho que me pôr a pau, menina! Uma mulher o que quer nesta vida é sossego e alegria, ou não é? Daqui ao cemitério é um «tirinho». A gente precisa é de quem nos leve a fazer uns desvios até chegar lá. É ou não é? Anda «home»!!!”
E lá foram! Ela à frente e ele rindo enquanto pagava os cafés, nada apressado, contando as moedas enquanto alternava o seu olhar entre o dinheiro e a sua mulher que reclamava na porta. Eu sorria e absorvia todas as emoções (as deles e as minhas), enquanto apreciava o rosto feliz daquele homem que, quando já se voltava para a saída, me disse (muito baixinho):
“Deus que me livre de a ter que enterrar, menina! Então é que eu nunca mais me ria na vida!!!”
Não será isto o amor?
– Carina Flor (Crónicas Jornal RV, novembro 2022)